(Re)haciendo diferencias de clase en movimiento

La clase media brasileña en Londres

 

(Re)fazendo diferenças de classe em movimento

A classe média brasileira em Londres

Angelo Martins Junior | ORCID: orcid.org/0000-0002-0878-8096

angelo.martinsjunior@bristol.ac.uk

University of Bristol

 

Reino Unido

 

Recibido: 30/05/2020

Aprobado: 09/07/2020

Resumen

Este artículo analiza el papel de la clase social (intersectada con género, raza y espacio) en la producción y negociación de la diferencia en un contexto de movilidad transnacional. Sin tomar de antemano el origen étnico compartido, resultando en la constitución de comunidades transnacionales unificadas y solidarias, este artículo demuestra cómo los brasileños de clase media negocian las representaciones estigmatizadas de clase (y racializadas) del migrante en la producción de diferencias sociales en Londres. Las diferencias de clase se producen a medida que las jornadas migratorias del grupo analizado son construida y entendidas como una experiencia cultural y de vida (cosmopolita), alejándose así de las representaciones de la comunidad brasileña y del migrante brasileño, entendido como el trabajador migrante/pobre que vive en la comunidad transnacional. Dicha diferenciación se produce a partir de una evaluación continua de sus vidas en Londres (aquí) en referencia a Brasil (allá). Reflexionar sobre su posición aquí y allá generalmente permite a los brasileños de clase media distinguirse a sí mismos en comparación con sus compatriotas en Londres, en un contexto político y social que estigmatiza los migrantes y las comunidades. Tal reflexión también produce frustración, enojo y ambivalencia, ya que la migración a menudo confunde las demarcaciones de clase que históricamente garantizaban distinciones para muchos de estos brasileños en Brasil.

 

Palabras clave: Clase social, Brasileños en Londres, Transnacionalismo.

 

Resumo

Este artigo analisa o papel da classe social (interseccionada com gênero, raça e espaço) na produção e negociação da diferença em um contexto de mobilidade transnacional. Para além dos debates que tomam de antemão etnia e/ou nacionalidade compartilhadas que resultam na constituição de comunidades transnacionais unificadas e solidárias, este artigo demonstra como brasileiros de classe média negociam as representações estigmatizadas de classe (e racializadas) do migrante na produção de diferenciações sociais em Londres. Diferenças de classe são produzidas na medida em que as jornadas migratórias do grupo analisado são construídas e entendidas como uma experiência cultural e de vida (cosmopolita), distanciando-se assim das representações da comunidade brasileira e do migrante brasileiro, entendidos como o pobre/migrante-trabalhador vivendo na comunidade transnacional. Tal diferenciação ocorre a partir de uma avaliação contínua de suas vidas em Londres (aqui) em referência ao Brasil (lá). Refletir sobre o posicionamento deles aqui e lá geralmente permite com que brasileiros da classe média se valorizem em comparação aos seus compatriotas em Londres, num contexto político e social que estigmatiza migrantes e comunidades. Tal reflexão também produz frustração, raiva e ambivalências, uma vez que a migração frequentemente embaralha as demarcações de classe que historicamente garantiam distinções a muitos desses brasileiros no Brasil.

 

Palavras-chave: Classe social, Brasileiros em Londres; Transnacionalismo

 

Introdução

 

Existe a comunidade brasileira aqui, mas eu não faço parte dela. O migrante é a pessoa fodida, pobre, fazendo subempregos. Eu não sou assim. Pode ser um preconceito de classe meu, mas temos vidas diferentes. (Elisa)

 

Minha conversa com Elisa, brasileira de cla­sse média que trabalha na indústria criativa britânica, aconteceu durante a festa de abertura do Brazilian Film Festival de Londres, em 2014. Durante nossa conversa, Elisa dizia estar participando do festival por ser amiga dos organizadores, uma vez que não frequentava eventos voltados à comunidade brasileira. Sua percepção em relação ao migrante brasileiro, definidos como os pobres realizando subemprego e vivendo na comunidade, reflete algumas das maneiras pelas quais brasileiros em Londres constroem a figura do migrante e da comunidade em relação à classe social. Tal construção frequentemente resulta em narrativas sobre divisões de classe e conflitos existentes entre brasileiros em Londres, ao invés de falas sobre uma comunidade brasileira que se ajuda por afinidades étnicas/nacionais. Assim, para além das suposições acadêmicas de que etnia e/ou nacionalidade compartilhadas resultariam automaticamente na constituição de comunidades transnacionais unificadas e solidárias (Levitt, 2001 e Djelic e Quack, 2010), este artigo analisa o papel da classe social na produção e negociação da diferença em um contexto migratório. Focando na experiência e narrativas de brasileiros de classe média (maioria autoidentificada como branca), discuto, mais especificamente, como diferenças de classe (interseccionada com gênero, raça e espaço) são (re)produzidas e negociadas na criação de divisões sociais entre brasileiros em Londres.

Acadêmicos têm demonstrado como debates transnacionais frequentemente não levam em consideração as múltiplas diferenças existentes entre migrantes (Grosfoguel et al., 2014 e Amin, 2012). Assim, representações homogeneizantes do migrante transnacional como um ator que flui por redes sociais étnicas, buscando melhores oportunidades de vida e vivendo em comunidades onde as relações são baseadas na solidariedade étnica, continuam a ser reproduzidas em muitos estudos. Mais do que um grupo homogêneo que fala a respeito de uma associação e pertencimento à uma comunidade étnica/nacional, as narrativas apresentadas neste artigo demonstram como diferenças de classe são centrais nas maneiras pelas quais esses brasileiros não só categorizam os espaços da cidade, mas também como se relacionam uns com os outros dentro de um contexto político e social, britânico, que estigmatiza migrantes e comunidades.

Apesar de toda intensidade e diversidade de pessoas circulando pelo mundo (Vertovec, 2007), discursos populares e políticos, bem como debates acadêmicos, continuam a oferecer comentários totalizantes e indiferenciados sobre migrantes e migração. Isso reflete, em parte, a ausência de uma definição clara (mesmo na lei) dos termos migrante e migração (Anderson e Blinder, 2012). O termo migrante é frouxamente utilizado em discursos públicos e políticos e, geralmente, é o fato de que determinadas pessoas se moveram de maneiras e locais específicos que as tornam legíveis como migrantes. Sua identificação como tal frequentemente mistura questões de status de imigração com nacionalidade, raça/etnia, motivo pra migrar e classe (Andersson, 2014). Assim, o termo migrante, rotineiramente, é infligido com suposições racistas, classistas e xenófobas onde indivíduos e grupos particulares são categorizados e estigmatizados como uma ameaça à cultura, valores, segurança, saúde e economia nacional (Sayad, 2004 e Tyler, 2013). Alguns políticos e parte da mídia britânica, por exemplo, diariamente representam o migrante como um parasita que migrou em busca de ganhos econômicos; uma ameaça aos recursos nacionais (Tyler, 2013: 9). No cerne desse tipo de discurso, migrantes e comunidades, num mundo pós-colonial, são estigmatizados como corpos e espaços incivilizados, degradados, dentro do mundo ocidental civilizado (Bhabha, 2019). Ao chegarem ao Reino Unido, os brasileiros se deparam com, e precisam negociar, tal representação de classe (e racializada) do migran­te.

Neste artigo, demonstro como brasileiros de classe-média negociam e buscam se distanciar dessas características de classe (e racializadas) presentes nas representações do migrante e da comunidade, resultando em diferenciações sociais entre os brasileiros em Londres; eles assim o fazem avaliando continuamente suas vidas em Londres (aqui) em referência ao Brasil (lá). Como será demonstrado ao longo do artigo, muitos dos brasileiros de classe média em Londres traduzem e negociam diferenças de classe (interseccionada com gênero e raça1) existentes dentro do grupo como uma forma de se valorizarem em relação as categorias estigmatizadas do migrante e da comunidade que operam no Reino Unido. Refletir sobre o posicionamento deles aqui e lá geralmente permite que alguns se valorizem em comparação aos seus compatriotas em Londres, uma vez que eles narram suas jornadas para Londres como uma experiência cultural e de vida -uma experiência cosmopolita (Hannerz, 1990)- o que, de acordo com eles, os diferenciaria do migrante brasileiro (econômico/pobre). Contudo, tal posicionamento não se dá de maneira simples e direta. Tentar se distinguir da representação estigmatizada e de classe do migrante é um processo também marcado por contradições, frustrações e raiva, já que, para boa parte desses brasileiros, migrar também resultou em uma mobilidade ocupacional e econômica descendente, embaralhando alguns marcadores de classe operacionalizados no Brasil. Como consequência, muitos precisam reorganizar constantemente as demarcações simbólicas de classe em suas estratégias de distanciamento da figura do migrante, em um novo contexto.

Empiricamente, este artigo é baseado em pesquisas empíricas que combinaram uma etnografia de 18 meses em locais de lazer com 33 entrevistas em profundidade com brasileiros em Londres. Os migrantes brasileiros, em geral, tendem a ser um grupo diverso, composto por pessoas de diferentes classes sociais, regiões, gêneros e motivadas por diferentes anseios. Apesar de sua diversidade, a população brasileira no exterior não é composta das pessoas mais pobres ou menos instruídas do país (Martes, 2011, Oliveira, 2014 e Evans et al., 2011). Estudos quantitativos sobre brasileiros em Londres tendem a retratar descobertas similares (McIlwaine et al., 2011 e Evans et al., 2011). Brasileiros em Londres são uma população jovem, maioria branca, com alto nível educacional (em relação à população brasileira como um todo)2 e proveniente de diversas re­giões (apesar das regiões Sul e Sudeste contribuírem com a maior proporção de migrantes (Evans et al., 2011). Em Londres, a população brasileira apresenta uma relativa dispersão geográfica pela cidade, como um todo, apesar de alguns distritos e bairros serem conhecidos como áreas de concentração de brasileiros, como Willesden Junction e Stockwell (ver Evans et al., 2011).

Como minha pesquisa focou nas interações entre diferentes grupos de brasileiros em Londres, foi necessário trabalhar com participantes de diferentes origens e com diversas razões para estar em Londres. Assim, eu indutivamente selecionei três grupos diferentes de pessoas:

 

 

Ocupação é um importante marcador usado pelos brasileiros para falar sobre divisões na população brasileira em Londres e para classificar locais de lazer (Martins Jr., 2022, ver Martins Jr. e Knowles, 2017, para uma detalhada discussão metodológica da pesquisa).

Neste artigo, especificamente, trabalho com os relatos de brasileiros pertencentes a diferentes frações da classe média brasileira. Para isso, dialogo com trabalhos de influência Bourdiesiana no Brasil (Bertoncelo, 2015 e O’Dougherty, 2002) que definem as demarcações da classe média brasileira não só por ocupação e renda, mas também por práticas de consumo, estilo de vida, gostos e praticas sociais, as quais são moldadas pelo volume e trajetória de capital econômico, cultural e social desses sujeitos (Bourdieu, 1984). Assim, utilizando a análise dos marcadores de classe média no Brasil de Maureen O’Dougherty (2002), também aproveitada por Angela Torresan (2012) no seu trabalho com a classe média brasileira em Portugal, os participantes de minha pesquisa, discutidos neste artigo, cresceram, no Brasil, dentro de uma vida e projeto social percebidos como de classe média, o qual envolvia ter uma boa educação (o que inclui colégios particulares e formação universitária), um emprego relativamente estável, com um salário suficiente para adquirir um carro, eventualmente comprar uma casa, viajar e comprar roupas e outros bens domésticos. Além disso, são pessoas que viam como importante o hábito de participar em eventos de entretenimento que também lhes proporcionassem algum capital cultural e gosto considerado educado, com o qual as pessoas pudessem distinguir sua situação dentro dos limites flexíveis da classe média brasileira.

 

Cosmopolitas e o migrante brasileiro

 

Ao enfatizar uma combinação de aspectos econômicos e socioculturais da vida, pessoas da classe média-alta brasileira que trabalham em empregos considerados altamente qualificados em Londres, fazem da diferença de classe a principal fronteira simbólica entre elas e os trabalhadores não qualificados que vivem dentro da comunidade brasileira. Seguindo Bourdieu (1987), a classe de um agente é definida relacionalmente no espaço social, considerando o volume e a composição dos capitais que se possuiu e que são mobilizados (econômico, cultural, social e simbólico), bem como por sua trajetória (Bourdieu, 1990a). Esses três eixos (volume, composição e trajetória do capital) são dimensões que produzem posições diferenciadas no espaço social, entre e dentro das classes sociais. Essas posições diferenciadas resultam não apenas em diferentes estilos de vida (habitus) mas também tendem a expressar uma posição homóloga do agente na divisão ocupacional do trabalho. A localização do agente no sistema ocupacional também é diferenciada e relacionada à distribuição de capital (Bourdieu, 1984). Para os brasileiros que realizam trabalhos altamente qualificados em Londres, a ocupação e o estilo de vida aparecem como marcadores fundamentais que os distanciam da representação do migrante brasileiro.

Brasileiros da classe média realizando traba­lhos considerados qualificados em Londres tendem a falar sobre seu movimento migratório como uma experiência cultural, cosmopolita, a qual os expõem à novas culturas e (um certo tipo de) diversidade. Tomemos Carla, por exemplo, uma advogada branca de 40 anos que deixou o Brasil para fazer um MBA em Direito nos EUA e depois trabalhou em bancos internacionais nos EUA, Portugal e Londres. Ela explicou como é ser uma cosmopolita internacionalmente móvel da seguinte maneira.

 

[Carla]: Quando saí do [Brasil] em 2002, era para ter essa experiência [cultural], mas não esperava viver e trabalhar em tantos países diferentes, com tantas pessoas diferentes. É um processo constante de aprendizado, lidando com a di­ver­sidade. Onde trabalho, há uma grande diversidade de pessoas (portugueses, brasileiros, britânicos, espanhóis, russos, franceses e sul-africanos). E, [nós] expatriados, acabamos nos relacionando, na vida cotidiana, com pessoas do trabalho. Em Londres, eu não socializo muito com os brasileiros.

 

[Pesquisador]: Você vai a lugares brasileiros?

 

[Carla]: Não. Eu vou a um salão de beleza brasileiro e já fui a um restaurante em Kilburn. Para ser sincero, acredito que isso é um preconceito meu, porque se você me disser “vamos a esse lugar brasileiro”, eu já vou achar que vai estar cheio de gente de baixo nível social do Brasil. O fato de serem brasileiros não cria necessariamente um vínculo comigo, porque eu tenho um estilo de vida diferente. Minha manicure e cabeleireira, por exemplo, são brasileiras. Eu vejo as vidas delas e ouço a conversa que elas têm quando estou no salão; é um mundo completamente diferente, que não faço parte. Trabalho, preocupações e vidas, são diferentes. Eles vão à igreja brasileira, vivem entre brasileiros e falam apenas português.

 

A maneira como Carla entende sua jornada migratória se encaixaria na definição fundamental de cosmopolitismo de Ulf Hannerz, uma postura intelectual e estética (das elites) de abertura às experiências culturais divergentes; uma disposição de se engajar com o outro (1990: 239). Contudo, apesar de Carla se considerar aberta a experiências culturais divergentes, a mesma abertura parece não ocorrer a brasileiros que não compartilham um estilo de vida semelhante ao dela. Seu estilo de vida cosmopolita (de classe) fornece a ela um processo constante de aprendizado, lidando com a diversidade em seu trabalho e com nas relações com outros expatriados, como ela diz. No entanto, ela reluta em se envolver com brasileiros de baixo nível social que vivem em um mundo completamente diferente. Em outras palavras, sua abertura à diversidade parece diminuir quando se trata de classe social.

Como sugere a entrevista de Carla, ao discutir seus compatriotas no exterior, em vez de falar sobre semelhanças étnicas/nacionais, os cosmopolitas brasileiros falam abertamente sobre diferentes posições ocupacionais no mercado de trabalho e os diferentes estilos de vida que resultam em divisões dentro da população. Os elevados capital econômico e cultural (acentuados por posições ocupacionais privilegiadas no mercado de trabalho) proporcionam-lhes um estilo de vida cosmopolita que não apenas os diferencia da maioria dos brasileiros em Londres, mas também permite-lhes evitar que se percebam como migrantes. Minha conversa com Jacob, que trabalha no altamente qualificado setor de Tecnologia da Informação, é bastante elucidativa a esse respeito:

 

[Carla]: Não me vejo como migrante. Eu falo quatro idiomas, viajo muito e sempre tenho dinheiro extra, o que me dá autonomia para dizer não às coisas que não quero fazer. Eu escolho meus trabalhos. Minha liberdade vem dessas coisas e também tenho documentos, o que faz a diferença. Eu sou mais um cidadão do mundo. Eu nem preciso procurar emprego hoje em dia; um headhunter fica me mandando mensagens o tempo todo, oferecendo-me empregos. Essas coisas tornam minha vida aqui diferente da dos brasileiros em geral. Tipo, eu fui a um lugar brasileiro para assistir a Copa do Mundo com meu colega de casa [brasileiro], mas não consegui interagir com ninguém lá. A diferença de classe aqui é enorme. Ir a lugares brasileiros aqui me faz ter contato com alguns brasileiros com quem eu nunca teria contato no Brasil.

 

Jacob, como Carla e outros trabalhadores considerados altamente qualificados que entrevistei, fala muitas línguas, trabalhou para diferentes empresas multinacionais em diferentes países e tem dupla cidadania, brasileira e italiana. Mais uma vez é importante enfatizar que seus elevados capital econômico, cultural e simbólico os colocam em posições diferentes das de muitos de seus conterrâneos em Londres. A variedade e o volume de seus capitais os tornam profissionais desejados, com um grande espaço de possibilidades para atuar no campo (Bourdieu, 1983:317) ou, nos termos de Jacob, isso lhe dá liberdade; permite que ele se chame de cidadão do mundo, como Carla se chamava de expatriada, em vez de usar o termo estigmatizado (e de classe) migrante.

Como começamos a ver, aqueles que trabalham em empregos considerados altamente qualificados também falam de segmentações espaciais e de classe entre o grupo. Na grande maioria das minhas conversas e entrevistas com a classe média brasileira, em Londres, eles associam a comunidade brasileira às áreas com alta concentração de migrantes (como Queensway, Bayswater e Willesden Junction). Assim, esses bairros são entendidos como a comunidade, o lugar do migrante (econômico). Para os cosmopolitas, migrantes brasileiros são definidos por sua pobreza, necessidade e aceitação à trabalhos indesejáveis, como dito por Elisa no início deste artigo; e a comunidade é o lugar que os “protege”. A esse respeito vejamos o que diz a mesma Elisa:

 

[Carla]: As pessoas pensam que os brasileiros aqui são todos como os “América” [referência à novela brasileira cujo enredo se concentra no sofrimento de trabalhadores brasileiros indocumentados nos EUA], mas não são. Nós não fazemos parte disso. Mas os “América” estão lá, morando lá, porque a comunidade os protege. Eles precisam de ajuda para sobreviver aqui, sem falar o idioma. Qual é o nome daquela área? Willesden Junction! Eu nunca estive lá. Eles também estão em Queens, algo assim. Queensway. Está cheio de brasileiros lá também; cheio de motoristas de entrega.

 

Para Elisa, não ter documentos, ser pobre e não falar o idioma coloca o migrante em uma posição de dependência da comunidade, uma dependência não compartilhada por cosmopolitas como ela. Em outras palavras, essas narrativas formadas no inconsciente urbano produzem uma distinção espacial de classe (Amin, 2012:68) entre o migrante brasileiro como um trabalhador desprovido e desvalorizado que vive em áreas específicas (identificadas como áreas comunitárias) e o cosmopolita, que migrou por estilo de vida e que não faz parte da comunidade. Para os cosmopolitas, a noção de comunidade é usada para enfatizar as demarcações de classe, em vez de vínculos étnicos. Isso é possível porque, ao chegar em Londres, esses indivíduos não surgem completamente deslocados do espaço, mas sim habitam e retrabalham o espaço com base em disposições, conhecimentos e formas de capital que trazem do passado (Taylor, 2009:46). Em Londres, as diferenças brasileiras não desaparecem. Pelo contrário, os capitais econômico, cultural e social moldam diretamente como esses grupos ocupam, se movem, negociam e usam os espaços de maneiras diferentes, produzindo, assim, distinções de classe.

Entretanto, pelas narrativas apresentadas acima, poderíamos erroneamente ser induzidos a concluir que a população brasileira de Londres possui uma clara divisão binária de classe e espacial, levando-nos a entender que existam dois grupos distintos, claramente separados: uma minoria de classe média e média-alta que trabalha em empregos altamente qualificados (cosmopolitas), que não interage com o outro grupo, a maioria dos demais, os migrantes não qualificados que vivem na comunidade brasileira. Tal achado empírico estaria em consonância com pesquisas sobre brasileiros residentes nos EUA (Oliveira, 2003 e Resende, 2003). No entanto, em Londres, tal divisão não é tão nítida assim, empiricamente. Muitos dos meus participantes de pesquisa, de classe média e média-alta, realizam ou já realizaram no passado, trabalhos considerados não qualificados, em Londres. Suas representações do migrante brasileiro e da comunidade precisam ser reconstruídas quando esse grupo tentar reconstruir divisões de classe (e espaciais).

 

Refazendo classe: cosmopolitas precários e o trabalhador sem educação

 

Os brasileiros de classe média cuja migração resultou em um rebaixamento ocupacional e econômico, em particular, precisam reorganizar continuamente os simbólicos de classe em suas estratégias de distanciamento do migrante brasileiro que vive na comunidade. Eu chamo esse grupo de cosmopolitas precários. Devido ao não reconhecimento de suas qualificações acadêmicas/profissionais, preconceitos por parte dos empregadores e/ou por estarem sujeitos ao controle de imigração, muitos brasileiros de classe média também realizaram trabalhos não qualificados em Londres. São serviços que eles provavelmente nunca teriam que realizar no Brasil. Assim, a migração pode desestabilizar os marcadores historicamente utilizados para constituir demarcações de classe social, como a ocupação. Como resultado, representações do migrante como sendo desprovido, pobre e fazendo trabalhos desqualificados, os quais aqueles em empregos altamente qualificados usam para se distinguir como cidadãos do mundo, precisam ser cuidadosamente negociados pelos cosmopolitas precários. Estes últimos, portanto, utilizam-se de outros marcadores para (re)construir a diferença de classe entre eles e o migrante brasileiro, marcadores que são frequentemente produzidos lá no Brasil e reinventados aqui em Londres.

Os motivos para ter se mudado para Londres é o primeiro marcador utilizado pelos cosmopolitas precários para se distanciarem da representação do migrante brasileiro. Manoel, por exemplo, explicou o que diferencia sua jornada da maioria dos brasileiros em Londres:

 

[Manoel]: O motivo de deixar o país é o que faz a diferença. Os brasileiros que estão aqui não vieram com os mesmos objetivos que eu, não estamos na mesma direção. Se eles tive­ssem vindo aqui para estudar, viajar, se desenvol­ver, seria diferente. Eles vieram aqui para eco­nomizar dinheiro e fazer seus negócios ilegais.

 

Os comentários de Manoel são típicos daqueles apresentados pelos meus participantes de pesquisa da classe média que haviam realizado, ou ainda realizavam, os chamados “trabalhos desqualificados”. Enfatizar que migraram em busca de um desenvolvimento pessoal é um meio de demonstrar que diferem do “migrante” (pobre) e de explicar as muitas condições precárias que enfrentaram em suas jornadas em Londres. A experiência de Laura é ilustrativa disso. Ela vem de uma família de classe média alta, de ascendência europeia, do Rio de Janeiro. Ela estudou em escolas particulares e, antes de vir para Londres, trabalhava como advogada. A decisão de vir para Londres ocorreu em 2007, quando ela tinha 30 anos; descontente com o seu relacionamento e se sentindo entediada com seu trabalho, Laura sentiu que precisava melhorar seu inglês e ter uma experiência cultural para se desenvolver:

 

[Laura]: Eu tinha certeza de que não vir para Londres seria uma grande frustração na minha vida. Eu queria ver o mundo, ter experiências culturais. Eu sabia que essa experiência de vida era importante para a minha evolução. Eu não queria deixar o Brasil para morar nos EUA, como brasileiros fazem; não é para mim, eu odeio a mentalidade consumista deles. Tinha que ser a Europa. Londres era o lugar pra eu morar.

 

Como muitos outros brasileiros que conheci em Londres que alegavam buscar tal experiência de vida, em nossas conversas, Laura frequentemente contrastava um estilo de vida europeu supostamente sofisticado e culturalmente rico com uma mentalidade americana consumista. Para Laura, os brasileiros que vão para os EUA são motivados por desejos econômicos. Ao enfatizar que ela tinha uma vida econômica estável no Brasil e que suas razões para se mudar para Londres eram melhorar o inglês e ter experiências culturais que a ajudariam a evoluir, Laura constrói um conjunto de marcadores através dos quais ela se posiciona como cosmopolita, em oposição à imagem do migrante brasileiro, que migra para aumentar seu capital econômico.

Embora os pertencentes à classe média brasileira utilizem suas motivações culturais como um marcador para se distanciar da figura do migrante brasileiro, tal distanciamento precisa ainda ser negociado devido aos vários níveis de precariedade que muitos experienciam. Laura, como muitas outras, ficou tão encantada com seu estilo de vida em Londres (com suas novas experiências, liberdade individual e acesso a bens e serviços culturais) que decidiu ficar mais do que os nove meses que havia planejado inicialmente. Quando a conheci, ela estava em Londres há vários anos e passara por condições precárias de trabalho e de vida. As realidades de sua experiência, de fato, eram bem semelhantes às dos considerados trabalhadores migrantes (Anderson, 2010).

 

[Laura]: Deixar o Brasil trabalhando como advogada e limpar copos em bares aqui? Eu chova todas as noites! Foi muito difícil. Um dia, um cliente pediram uma cerveja. Eu tive que dizer a ele: “Desculpe, mas não posso te atender, eu limpo copos”. Ele se virou para mim e disse: “Fuck you!” Eu saí de lá chorando. Eu estava com muita raiva. Primeiro, por causa da agressão dele e, segundo, porque pensei: “Eu deveria estar lá, do outro lado do balcão”. Foi difícil aceitar que eu estava nessa situação, porque eu falava inglês, sou uma pessoa bem apresentável, por que tenho que estar lá, limpando?

 

Ela então disse:

 

[Laura]: A primeira vez que voltei ao Brasil, pensei que me sentiria inferior aos meus amigos. Todos eles tinham bons empregos, casas e, claro, tudo isso importa. Eu acho que sucesso profissional não é tudo na vida. Eles [amigos no Brasil] nunca compraram comida barata com prazo de validade vencendo. Eles nunca choraram por causa de geleia, como quando eu queria comer geleia aqui e não tinha dinheiro. Saí do supermercado chorando. É ridículo. Minha mãe ficou brava comigo, disse que eu deveria ter contado a ela, mas não podia contar. Eu tinha que viver isso! Eu amei tudo. No Brasil, eu não iria para a área com desconto no supermercado. É claro que se eu estivesse no Brasil, estaria em uma posição muito melhor do que aqui, profissionalmente. Mas, pessoalmente, adquirimos valores aqui que você nem consegue explicar para as pessoas. É um desenvolvimento muito pessoal.

 

A mobilidade transnacional de Laura gerou espaços contraditórios, onde ideias simbólicas do cosmopolitismo colidiram com condições materiais de vida restritivas e precárias. O significado de estar em Londres como indicativo de um estilo de vida cosmopolita é, em termos práticos, sustentado por realidades de trabalho e condições de vida precárias. Em outras palavras, muitos enfatizam os aspectos positivos da experiência de vida cultural adquirida ao passar por situações precárias que, devido às condições de classe, provavelmente não passariam no Brasil. Essas narrativas são construídas, então, paralelamente à rejeição da visão estigmatizada do migrante econômico cujas condições precárias não são justificadas por narrativas de enriquecimento cultural.

É necessário notar aqui que ver os aspectos precários de seu estilo de vida cosmopolita como um sacrifício positivo é permitido pelo fato de muitos deles tomarem sua experiência, inicialmente, como algo temporário. Muitos dos meus participantes de pesquisa que sofreram um rebaixamento ocupacional em Londres fizeram comentários como Essa é apenas uma lacuna na minha vida, por um tempo ou Isso não faz parte da minha vida real. Assim, esses migrantes veem o trabalho precário realizado como puramente instrumental, um meio para um fim. O fim reivindicado pelos brasileiros de classe média é definido como uma prática cultural e não econômica, que é entendida como mais moral e espiritualmente profunda. Esses brasileiros, como Laura, estão, obviamente, conscientes de sua situação degradada, mas sofrem para fazer seu trabalho e aceitar suas condições de vida, mesmo que isso não faça parte da vida real. Dessa forma, ao negociarem sua posição em Londres, fazem isso conectando-a às suas vidas no Brasil, ficando simbolicamente, socialmente e emocionalmente presentes no Brasil e em Londres, ao mesmo tempo. Eles se incomodam por estar atrás do balcão, servindo e não sendo servidos. Além disso, estão constantemente fazendo comparações entre suas próprias vidas e as de seus parentes e amigos, que têm bons empregos e casas no Brasil, sofrendo com possíveis sentimentos de inferioridade. Essa presença dupla os faz repensar e negociar continuamente sua própria experiência cosmopolita. Tal experiência é ainda mais difícil para aqueles que não retornaram ao Brasil como haviam planejado inicialmente e ainda estão em Londres, sem atingir a desejada mobilidade ocupacional. Nesses casos, a questão da temporalidade como justificativa para ter uma experiência de vida por um curto período começa a perder força, e outros marcadores são utilizados para se diferenciar do migrante brasileiro.

Educação é um marcador importante para aqueles que não adquiriram mobilidade ocupacional em Londres. Eles usam a noção de educação não apenas para indicar qualificações, mas também civilidade, saber-se como se comportar -um habitus de classe média (Bourdieu, 1990b)-. Em outras palavras, enfatizar seu capital cultural e os valores da classe média é uma maneira de diferenciar-se dos outros em um momento em que eles se sentem fora de lugar. Após o trabalho de Bourdieu, vários estudiosos relataram como o corpo socializado (habitus) é envolvido em processos de mudança social, ficando fora de lugar (Aarseth et al., 2016, Skeggs, 1997, Puwar, 2004 e Silva, 2016). Estar fora de lugar significa falta de cumplicidade ontológica entre o habitus e o campo, um momento em que um habitus encontra um mundo social do qual não é um produto (Bourdieu e Wacquant 1992:127). O próprio Bourdieu, por exemplo, observou que, devido a sua própria trajetória de classe, de alguém criado em uma família da classe trabalhadora em uma vila camponesa na França, ele continuou a ter um profundo sentimento de ser um estranho no universo intelectual (Bourdieu e Wacquant 1992:209). Em seu trabalho, Puwar (2004) concentrou-se em como a mobilidade social ascendente produz um desajuste entre habitus e campo, no qual mulheres negras/brancas da classe trabalhadora se sentem como um peixe fora d’água em ambientes da classe média branca/masculina. Meus dados mostram conflitos semelhantes entre os brasileiros. Diferentemente de Puwar e Bourdieu, no entanto, os brasileiros brancos de classe média fora de lugar no Reino Unido seguiram uma trajetória descendente de mobilidade de classe e racial.

Sentir-se deslocado, para os brasileiros brancos de classe média, advém da mudança de posição no espaço social. Isso se expressa primeiro pela posição ocupacional no mercado de trabalho -por exemplo, quando Laura afirmou que era difícil estar do outro lado do balcão (servir ao invés de ser servida)- uma posição historicamente ocupada por brasileiros pobres, na maioria pretos e pardos. Segundo, devido à sua mobilidade descendente, eles precisam interagir, de maneira simétrica ou subordinada, com os corpos que costumavam servi-los. Esses momentos de encontro com corpos dissonantes em uma situação de posição hierárquica semelhante (senão invertida) geralmente resultam em conflitos emocionais e discussões (Martins Jr., 2014). Nesses momentos, os brasileiros de classe média enfatizam ainda mais os aspectos culturais e morais da classe social para restabelecer a hierarquia que foi ameaçada por sua mobilidade ocupacional descendente. Isso pode ser visto com Rose.

 

[Rosa]: Estou infeliz, não quero continuar trabalhando como garçonete pelo resto da minha vida. Quero pelo menos trabalhar em uma loja de roupas. Eu me inscrevi para algumas vagas, mas elas nunca me chamam. Não acho que seja por causa do meu inglês, porque sou a melhor garçonete do hotel. Meu nome sempre aparece na lista de comentários com muitos elogios dos clientes. Eu sei como conversar, tenho conhecimento e cultura. Adoro servir pessoas ricas aqui, porque sei como me comportar ao lado delas, como conversar com elas. Mas estou lá servindo e trabalhando com pessoas ignorantes. Estou cansado de trabalhar com pessoas sem educação. Não é preconceito, mas aqui, assim como no Brasil, são os pobres, pretos, ignorantes que fazem esse tipo de trabalho; sem cultura e ambições na vida. Eles nem falam nem português corretamente e querem dizer como faço meu trabalho.

 

Posicionada em uma ocupação que ela considera de baixo valor e próxima aos pobres ignorantes, Rose se sente fora de lugar. Quando ela conversa com seus clientes ela seria quando ela se sente como um peixe na água, experimentando um momento de cumplicidade ontológica, pois seu habitus e capital permitem que ela navegue facilmente nessas interações. O mesmo não é verdade, segundo ela, quando ela interage com seus colegas de trabalho. Embora ela esteja fazendo um trabalho considerado de migrante, ela diz não ser como eles: ela tem conhecimento, cultura e ambições. Aqui, mais uma vez, viver sob a condição de dupla presença, avaliando constantemente suas posições por meio de referências do Brasil e do Reino Unido, resulta em frustrações e ansiedades para a classe média branca. Nos contextos do local de trabalho em que as hierarquias são niveladas ou invertidas, os cosmopolitas precários se voltam para cultura e educação como principais marcadores com os quais buscam sustentar a erosão das demarcações de classe (e racializadas). Quando falam com raiva dos seus compatriotas inferiores com os quais têm de trabalhar, é comum ouvir comentários como: Eles podem ter dinheiro, mas são pobres em espírito e Educação vem do berço [e não do dinheiro], fazendo referência novamente ao Brasil como forma de alcançar distinção em Londres.

 

Fazendo classe (espacializada) através da moralidade

 

Uma hierarquia moral de maneiras aceitáveis e não aceitáveis de se comportar e viver também é usada pelos cosmopolitas precários para se distanciarem tanto da imagem do migrante brasileiro quanto da comunidade. A divisão cartesiana mente/corpo, usada para classificar e hierarquizar racialmente pessoas e lugares (Grosfoguel et al., 2014), também é expressa em termos de classe social (Bourdieu, 1984 e Lawler, 2005). Como observa Stephanie Lawler (2005:432), certos tipos de roupas, localização e aparência corporal indicaria uma patologia subjacente que associa os pobres ao material e corporificado em contraposição às classes racionais superiores e seus lugares distintos. Em um contexto de mobilidade econômica e ocupacional descendente, a classe média brasileira também enfatiza essas noções historicamente arraigadas de conduta racional (moderna) como sendo o cerne dos valores que os distanciam de migrantes brasileiros e comunidade. No entanto, esses marcadores também são negociados de acordo com suas próprias situações de vida em Londres.

Em suas estratégias para reconstruir diferenças de classe em Londres, a precária classe média enquadra o migrante brasileiro como carente de bons costumes e valores. Laura, por exemplo, me contou sobre seu preconceito em relação aos brasileiros em Londres, discutindo sua experiência com uma brasileira para quem trabalhava:

 

[Laura]: Esse é o meu preconceito com esse tipo de brasileiro aqui - eles são rudes por natureza. Quando essas pessoas conseguem alcançar um nível melhor aqui, com dinheiro, elas não mudam. Eles continuarão gritando e fazendo qualquer coisa por dinheiro. Eu não vim para Londres para viver neste microuniverso brasileiro, cheio de coisas erradas, fofocas, pessoas tirando vantagens. Não estou na Europa para lidar com valores que nunca tive, nem mesmo no Brasil.

 

Nessa passagem, a representação do migrante é imbuída de conotações morais que começam a restabelecer hierarquias anteriores. Embora todos estejam fazendo o mesmo tipo de trabalho nos mesmos lugares, o migrante econômico (pobre) é ganancioso e rude por natureza. Essa hierarquia de estilos de vida é uma tradução da hierarquia de classes, na qual as classes mais baixas são vistas como carentes da moralidade da classe média. Como a constituição do migrante brasileiro segue tal lógica, a comunidade, por consequência, também é reconstruída como desprovida de moral. Aqui, a comunidade não representa mais apenas um lugar que fornece proteção aos necessitados, como foi descrito pelos trabalhadores considerados altamente qualificados. Em vez disso, a comunidade é construída como o lugar que carece de bons valores e moralidade, o microuniverso brasileiro, como diz Laura. Nesse sentido, como argumentam Ben Gidley e Alison Rooke (2010:104), a imoralidade trabalha discursivamente para incitar o julgamento e gerar um posicionamento de classe na paisagem cultural e, devo acrescentar, na paisagem urbana. Assim, áreas específicas em Londres são consideradas repulsivas, pois passam a ser associadas a populações que são igualmente compreendidas. Laura, por exemplo, descreveu Willesden Junction da seguinte maneira:

 

[Laura]: Eles estão aqui, mas vivem como se ainda estivessem no Brasil. Você só precisa ir a “Wilsdon Johnsons” [ridicularizando a pronunciação dos brasileiros] e você os verá lá, fazendo seus negócios na comunidade, nas lojas e na igreja. É nojento; isso me irrita! É uma oportunidade perdida. Tenho muitos amigos, pessoas brilhantes, que foram cuspidos de Londres porque não tinham documento, e poderiam estar aqui dedicando-se a aprender, estudar, fazer coisas legais, agregar valor à sociedade e não podem, porque eles não têm documento. E essas pessoas estão aqui, vivendo como se ainda estivessem no Brasil. É injusto e desrespeitoso. Eles nem se esforçam para aprender coisas diferentes ou falar inglês.

 

Quando os cosmopolitas precários explicam por que a maneira como essas pessoas vivem em Londres é desrespeitosa, eles tendem a enquadrar suas condições sociais e de vida, como Laura fez, como se fossem determinadas pela psicologia individual (vivendo lá como se ainda estivessem no Brasil, não se esforçando para falar inglês) (ver Walkerdine, 2003 e Lawler, 2005) ou pela biologia/cultura (são rudes por natureza). Tais narrativas enterram vivas (Goldberg e Giroux, 2014) quaisquer constrangimentos sociais existentes na vida e nas escolhas dos indivíduos e eclipsam qualquer referência às desigualdades sociais e à exploração presentes na constituição e reprodução de tais carências. Sua percepção dispensa o capital econômico e cultural necessários para obter um estilo de vida que seria visto como valorizado, cosmopolita (Igarashi e Saito, 2014). Em vez disso, a falta de um estilo de vida cosmopolita ou capital cultural e habitus de classe média, que nos termos de Laura significaria dedicar-se a aprender, estudar e fazer coisas legais, é apresentada como uma escolha ou comportamento individual. Além disso, essa falta também é desrespeitosa com aqueles que poderiam estar em Londres, agregando valor à sociedade, mas não estão porque não possuem documentos. Nesse caso, agregar valor certamente não se refere ao valor econômico, já que a maioria deles, inclusive a própria Laura, trabalha longas horas, com salários baixos e paga altos aluguéis para viver em condições precárias. Em vez disso, valor refere-se ao valor cultural imaginado como resultado de seu estilo de vida cosmopolita, de classe média e moralmente superior.

Assim, viver como se ainda estivessem no Brasil frequentando lojas e igrejas brasileiras e falando português: é visto como “irritante”, “injusto e desrespeitoso”; eles estariam perdendo a oportunidade de deixar lá (Brasil) para trás e melhorar/civilizar-se aqui (Londres). Aqui, os marcadores estéticos de uma comunidade, que teoricamente ofereceriam uma zona de conforto ao migrante que lá reside, também são usados para caracterizar o espaço como errado e cheio de pessoas erradas (Levine-Rasky, 2016 e Goldberg, 1996). No entanto, nem todo brasileiro de classe média é capaz de evitar ir ou morar nesses lugares.

Devido às suas condições econômicas precárias, muitos brasileiros de classe média não podem ser seletivos quanto ao local em que vivem em Londres. Como resultado, muitos deles acabam morando em áreas consideradas comunidades brasileiras, locais que costumavam alegar que nunca morariam. Nesses casos, os parâmetros para pertencer -ou não pertencer- à comunidade precisam ir para além de ocupar o espaço geográfico em si. Como o espaço em si não é mais suficiente para produzir a distinção, a moralidade e os diferentes modos de apropriação desse espaço em particular tornam-se os marcadores em suas narrativas de distinção. Nesse contexto, o contraste entre estilos de vida valorizados e inferiores se torna particularmente importante na definição da comunidade, como Manoel me explicou. Depois de sempre categorizar Willesden Junction como um lugar nojento, Manoel e seus colegas de casa se mudaram para a área: encontraram uma casa boa e acessível em Willesden. Essa ação levou Manoel a re-significar sua narrativa sobre a comunidade brasileira, indo além das definições geográficas.

 

[Manoel]: [a comunidade brasileira] está em Willesden Junction, mas não me sinto parte disso. Eu não saio com brasileiros. Quero dizer, é claro, você sabe que eu moro com brasileiros, mas eles não são como os brasileiros que você vê nos bares por aqui. Eles só querem fazer festas, explorar um ao outro, fazer coisas ilegais. Eles chegam à sua casa, comem e bebem como animais, monstros e nem têm modos pra trazer uma bebida. Além disso, eu não assisto TV brasileira, não vou a lugares brasileiros. A comunidade também é Brazilian News [jornal brasileiro em Londres], Leros [revista brasileira em Londres], Guanabara [Brazilian nightclub].

 

Como podemos ver com Manoel, para quem acaba morando em locais considerados áreas brasileiras e com brasileiros, a comunidade é redefinida. Portanto, não é apenas a área que é identificada como brasileira, mas também as conexões entre o espaço e os corpos inferiores. Mesmo vivendo na mesma área, eles não compartilhariam da mesma moralidade. Como Manoel disse usando representações animalescas, ele e seus colegas de casa não fazem parte da comunidade, porque não são como os brasileiros que você vê aqui, que se aproveitam um do outro e comem e bebem como animais ou monstros. Assim, o migrante que mora na comunidade é definido pelo fracasso em não se conformar ou se desinteressar pelas maneiras corretas de ser e de fazer (Bourdieu, 1986:511). Dentro dessa lógica, ter bons valores/estilo de vida se torna, como observa Lawler, parte da reivindicação de um monopólio da humanidade (2005:439). Aqueles marcados como apropriadamente humanos têm bons valores, moralidade e possuem a capacidade inata de apreciar a beleza (ter gosto), enquanto aqueles que não possuem essas propriedades estão desprovidos de humanidade (idem: 437). Fazer parte da comunidade é narrado como algo mais do que apenas morar em uma área brasileira; significa viver lá e não saber como se comportar. Além disso, o que você consome também assume um papel importante na negociação de fazer parte da comunidade. Como Manoel explicou, os brasileiros que você vê [em Willesden] consomem a cultura da comunidade e seus locais de lazer.

 

Negociando classe através de corpos (nojentos) e gostos

 

Ao transpor classe e espaço, os cosmopolitas precários também tentam redefinir continuamente as diferenças de classe em Londres mapeando maneiras legítimas e ilegítimas de ser e consumir. Para Bourdieu (1984), os grupos dominantes frequentemente legitimam sua própria cultura e modos de ser (estilos de vida) como superiores aos das classes mais baixas, produzindo distinção de classe pelo gosto. Nessa lógica, estética é traduzida em moralidade, uma vez que aquelas consideradas desprovidas de “bom gosto” também são representadas como moralmente deficitárias (Lawler, 2005:441). À medida que a migração embaralha as fronteiras entre brasileiros da classe média e da classe trabalhadora em Londres, ambos os grupos podem economicamente acessar bens, serviços e espaços semelhantes. Como consequência, as narrativas que produzem marcadores de classe concentram-se principalmente em atitudes e espaços considerados nojentos. O trabalho de Bourdieu (1984) e Mary Douglas (1966:2) destaca como o nojo não é uma característica intrínseca do objeto nojento. Como observado por Douglas, não existe sujeira absoluta, existe no olho de quem vê. Nesse sentido, o nojo (o sentimento produzido pela sujeira, por exemplo) é um subproduto de uma ordenação e classificação sistemática da matéria (Douglas, 1966: 36), que ajuda a traçar demarcações de classe (Bourdieu, 1984). A partir disso, Lawler (2005:438) argumenta que o nojo é um indicador da interface entre o pessoal e o social, sendo uma emoção poderosa envolvida no trabalho de traçar distinções [de classe]. Nesse sentido, a narrativa de repulsa dos brasileiros da classe média referente ao gosto do migrante brasileiro e a sua suposta moralidade inferior estão no centro de suas subjetividades, uma vez que seus selves são produzidos em oposição ao “inferior”, que os repele.

Como observado, os oriundos da classe média brasileira frequentemente comentam sobre os nojentos locais de lazer brasileiros e sua estrita aversão a eles. O consumo de lazer é um dos exemplos que os cosmopolitas precários usam com mais frequência na construção do brasileiro inferior, com falta de bom gosto e boas maneiras. Nesses lugares, seria possível encontrar o migrante real se comportando de maneira imoral e ouvindo sua música igualmente imoral. Segundo Maria, a presença desses corpos foi o que a fez parar de ir a lugares brasileiros.

 

[Maria]: Eu frequentei muitos lugares brasileiros. Vi todos eles surgirem em Londres, mas também vi esses lugares sendo frequentados por esses outros brasileiros, trazendo esse funk ostentação e sertanejo. As letras são ridículas, não há educação ou cultura. É tudo sobre dinheiro, superficialidade do consu­mis­mo, falta de moralidade e incentivo à promiscuidade.

 

Pela narrativa de Maria, podemos ver como o gosto (ou a percebida falta do mesmo) e a moralidade se cruzam com o espaço na constituição da abjeção da classe média aos locais de lazer brasileiros. Maria marca a presença desses outros brasileiros através de sua música popular inferior, funk ostentação e sertanejo. Funk ostentação, é um estilo musical brasileiro criado no final dos anos 2000 nas periferias urbanas pobres de São Paulo. A maioria de seus seguidores é composta por jovens pobres e da classe trabalhadora (maioria pretos e pardos), os que aspiram a um estilo de vida cheio de consumos conspícuos, representado nas letras das músicas (Zieli, 2014). Sertanejo, por outro lado, é música country brasileira. Originada na década de 1920, suas letras focavam tradicionalmente no estilo de vida do interior do país (Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, 2002). Eles representam os dois corpos que a classe média cosmopolita acha repulsivos, em Londres: os pobres urbanos (geralmente racializados como negros) e os compatriotas não modernos. No entanto, assim como fazer parte da comunidade foi negociado (de tal forma que não foi necessariamente definido apenas por morar na região considerada brasileira, em si), o consumo de lazer e música brasileira também está aberto à negociação.

O mapeamento das fronteiras culturais do lazer (il)legítimo em Londres não é necessariamente simples. Primeiro, os lugares classificados como brasileiros e, portanto, a serem evitados, pela classe média não são necessariamente clubes brasileiros. Segundo, nem todos os lugares em que a cultura brasileira é consumida são considerados brasileiros e, portanto, repulsivos. E, terceiro, não é verdadeiro dizer que brasileiros de classe média nunca consumem música brasileira. Mais uma vez, suas narrativas mudam e o que torna os lugares e as músicas “inferiores” são os corpos conectados a estes e a maneira como são utilizados e consumidos. Em sua pesquisa sobre classe e consumo cultural no Brasil, por exemplo, Edison Bertoncelo (2015:461) mostra como indivíduos com maior capital econômico e cultural produzem distinção entre e intraclasses através de dois fatores em seu repertório de gosto: combinação seletiva diversa e modos de apropriação de uma atividade cultural.

Segundo Bertoncelo, as preferências pelo sertanejo e pelo funk são mais frequentes entre indivíduos com níveis mais baixos de capital econômico e cultural, mas não restritos a eles. Consumir uma combinação de sertanejo, por exemplo, e um gênero musical (ou outra atividade cultural) associado estritamente a indivíduos altamente engajados culturalmente ainda produz distinção de classe para aqueles que têm uma posição privilegiada no espaço social. Ademais, o modo de apropriação dessas atividades culturais é outro fator na produção de demarcações de classe. Minha conversa com Bruna, uma mulher de 24 anos de São Paulo que estava em Londres fazendo seu mestrado e trabalhando em período parcial, é ilustrativa desses processos entre os brasileiros em Londres.

Conheci Bruna no Clube do Choro, uma festa mensal brasileira em Camden Town. Ela estava lá pela terceira vez, com alguns amigos não brasileiros de sua universidade. Embora Bruna estivesse em uma festa organizada por brasileiros, com música brasileira e nomeada em português, ela me disse que não frequentava locais de lazer brasileiros em Londres. Interrompi-a então dizendo que o Clube do Choro, onde estávamos, também era um lugar brasileiro, ela disse:

 

[Bruna]: Sim, mas é diferente. Você não quer comparar as pessoas que vêm aqui com as que vão no Guanabara ou comparar o chorinho3 com as músicas que tocam lá. Você sabe exatamente do que estou falando. Uma vez fui ao Guanabara porque meus amigos [não brasileiros] queriam dançar música brasileira. Levei-os para lá, mas nunca voltarei. Eles estavam tocando apenas sertanejo. Não tenho preconceitos e gosto de ouvir sertanejo, às vezes, para dançar. Em São Paulo, eu costumava ir ao Villa Country [um clube de Sertanejo frequentado pela jovem classe média]. Mas Guanabara é diferente. Tudo lá é nojento. Está cheio de pessoas feias. Eles colocaram a classe mais baixa de brasileiros juntos naquele lugar. Por exemplo, gosto do O’Neal’s [pub irlandês no centro de Londres]. Eles tocam música que eu gosto, é um local agradável - mas é cheio de brasileiros, pessoas feias. Então, eu não vou mais lá, porque para mim é um lugar brasileiro agora.

 

Para Bruna, o que constitui um lugar brasileiro é a combinação do tipo de corpo (de classe) que seria encontrado nesses locais e os diferentes modos de apropriação do espaço e da música. Usando essa lógica, ela classifica o O’Neal’s, um pub irlandês, como um lugar brasileiro, mas não o Club do Choro. Seguindo a mesma lógica, ouvir sertanejo em São Paulo no Villa Country não é tão nojento quanto ouvir sertanejo em Londres, no Guanabara. No Guanabara, quem a ouve é gente feia, a classe mais baixa de brasileiros, como ela disse. Por outro lado, em São Paulo, Bruna às vezes ouve sertanejo e, quando o faz, é para dançar e se divertir em um clube de classe média.

A categorização de Bruna dos tipos de corpos que ocupam um lugar e/ou consomem uma atividade como um meio de classificar esse local ou atividade ressoa com as descobertas de O’Dougherty (2002) sobre estilos de vida de classe média no Brasil. O’Dougherty (2002:93) mostra como, durante a crise dos anos 90, muitas pessoas da classe média paulista não conseguiram encontrar emprego em suas áreas de especialização, tornando-se assim pequenos empreendedores. Nesse processo, transformaram empreendimentos de trabalhadores, como padarias, em empresas de classe média, investindo valores simbólicos na ressignificação e renomeação dessas atividades. Nesse contexto, o critério de definição dos locais e atividades se torna flexível, seguindo o decreto do orador: Se fizermos isso, será um trabalho de classe média.

Além disso, em um contexto de grande desigualdade social, a conexão entre classe social, beleza e o acesso e controle de recursos materiais e simbólicos (Skeggs, 2005) é extremamente acentuada no Brasil (ver Machado-Borges, 2009). Quando Bruna e muitos outros brasileiros em Londres explicam que não gostam de frequentar lugares brasileiros em Londres porque estão cheios de pessoas feias, estão fazendo uma referência direta as demarcações de classe social (e racializadas) que são construídas através da beleza. É comum ouvir em algumas partes do Brasil que não existem pessoas feias, apenas pessoas pobres. Como destaca Thaís Machado-Borges (2009: 214), o consumo estético -por meio de (dietas, moda) e pelo corpo (spas, tratamentos de beleza, cirurgia estética)- associados à educação e à ocupação, são meios simbólicos e materiais para posicionar-se dentro das hierarquias sociais contemporâneas brasileiras de gênero, classe e “raça”.

Como consequência, há uma suposição de que as pessoas da classe trabalhadora (e pretas e pardas) devem deixar de mostrar os sinais de sua classe trabalhadora/negritude, alterando seus gostos, comportamento e corpo. No entanto, quando as pessoas da classe trabalhadora mostram sinais de classe média, especialmente através do consumo, elas também podem ser condenadas e ridicularizadas como pretensiosas ou cafonas. Nesses casos, a falta de bom gosto associa-se à cultura consumista, algo que, aparentemente, a classe média seria imune (Lawler, 2005), como Laura explicou quando me contou como identifica um migrante brasileiro em Londres.

 

[Laura]: Mulheres, reconheço pelos cabelos alisados, calça jeans e Nike. Sério, quem usa isso? Brega. Só Americano e brasileiros, que seguem eles. Se você vir Nike Shox branco, aquela calça skinny e o cabelo alisado, é brasileira! Eu costumava me sentir envergonhada quando ia com meu namorado [francês] a Bayswater para comer em um restaurante brasileiro e víamos essas pessoas lá. Os homens também são bregas; o assunto da conversa deles, a maneira como eles se vestem, e estão sempre usando aquele relógio grande. Essas pessoas não têm dinheiro no Brasil. Aqui eles podem comprar tudo, podem ter iPads, iPhones. Eles adoram comprar, no final não terão dinheiro, mas compram a bolsa que desejam. É como um complexo de inferioridade, essa coisa de colonizado e colonizador. Para mim, isso é muito claro: é uma regra que uma pessoa colonizada sempre será colonizada, você pode conferir. Veja o povo francês, é mais discreto, não precisa disso. Embora os italianos não sigam a regra. Eles também são brega, gostam das coisas de Dolce e Gabbana, mas é assim que eles são. Não há explicação. Mas, com [esses] brasileiros essa mentalidade de colonizador e colonizado é forte.

 

Como podemos ver com Laura, quando o migrante brasileiro obtém os recursos econômicos para adquirir bens que somente pessoas como ela podiam comprar no Brasil, eles são marcados como materialistas; essa materialidade excessiva é então usada para codificar o corpo da classe trabalhadora como repulsivo. Como argumenta Bourdieu (1984), as escolhas de estilo de vida são restringidas por possibilidades econômicas, mas também são construídas com base no habitus, o sistema de disposições através do qual diferentes classes sociais avaliam suas chances de vida e as práticas culturais às quais podem aspirar. As classes dominantes lucram com sua educação formal e familiar, que lhes fornecem os códigos culturais que lhes permitem demonstrar sua apreciação pela cultura legítima. Aqueles que não passaram por esse longo processo de aprendizado cultural, mas alcançaram os meios econômicos para acessar certos bens que anteriormente não podiam, geralmente são estigmatizados pelo grupo dominante como vulgar (ver também Miller, 2007). No entanto, para Laura, essa falta de códigos pode ser explicada por um complexo de inferioridade enraizado no que ela chama de coisa de colonizado e colonizador; para ela, a pessoa colonizada sempre será um corpo colonizado. Assim, a falta de bom gosto, breguice, do migrante brasileiro é representativa da regra: uma mentalidade colonizada pelo consumismo americano (EUA são os colonizadores, neste caso). Como forma de demonstrar sua regra, Laura faz referência ao gosto francês supostamente sofisticado e discreto, aquele que ela admira e considera legítimo e que não sofre da mentalidade colonizada. Ao mesmo tempo, a breguice presente na moda supostamente excessiva do italiano é vista como uma exceção à regra, que é explicada como sendo do jeito que são, em vez do desprovimento de bom gosto inerente dos colonizados.

De certa forma, pode-se concordar com Laura, pois sua ideia é baseada no fato de que o colonialismo foi um processo que colonizou não apenas lugares e corpos, mas também as almas/mentes das pessoas (Sayad, 2004). Como resultado, a lógica colonial continuaria a ser reproduzida mesmo com o fim das administrações coloniais, uma vez que o mundo ocidental é percebido como o exemplo a ser seguido (Quijano, 2000). No entanto, Laura fala da mentalidade colonizada para construir diferenças de classe entre ela e o migrante brasileiro americanizado consumista. Ao legitimar o que ela considera a sofisticada cultura francesa que influencia seu gosto de classe, em vez de romper com a colonização, Laura está validando sua lógica e se alinhando ao colonizador. Esse alinhamento pode advir do fato de ela ser descendente do colonizador; portanto, vir para a Europa poderia, para ela, simbolizar quase que uma situação de voltar para casa, deixando para trás todos os marcadores brega que a deixam envergonhada de ser brasileira atrás.

Os brasileiros também constroem demarcações de classe interseccionadas com gênero em Londres. Nira Yuval-Davis e Floya Anthias (1989) e McClintock (1993) mostraram como as mulheres trabalham como marcadores simbólicos na tentativa de estabelecer fronteiras entre nações, comunidades e grupos. McClintock (1993:69) demonstra como as representações de uma mulher africana pura e a rendição decorosa de sua sexualidade ao patriarca ajudaram, por exemplo, a construir o nacionalismo africâner e seus fronteiras com os “outros” sul-africanos brancos. Tais representações de gênero também são empregadas pelos brasileiros na produção de fronteiras de classe. Por exemplo, depois de me dizer que ela nunca voltaria ao Guanabara, porque lá havia pessoas feias e a classe mais baixa de brasileiros, perguntei a Bruna o que ela queria dizer com aquilo. Ela disse que o local é cheio de piriguetes. O termo piriguete, usado exclusivamente para mulheres, é semelhante ao termo do Reino Unido “chav”. Assim como o chav, a figura das piriguetes é frequentemente apresentada como evidência da delinquência moral de meninas e mulheres da classe trabalhadora (Tyler e Bennett, 2010). Bruna continuou:

 

[Bruna]: Piriguete é uma mistura de tudo que faz você se sentir envergonhada; o compor­tamento, a maneira como conversam, o que falam, como se movem, como se vestem, como se comportam com os homens: usam uns shorts que mostram a bunda; falam alto, movendo os cabelos quando dançam, se esfregando nos homens.

 

Como podemos ver na narrativa de Bruna, o corpo e a feminilidade das mulheres têm um lugar importante na construção da imoral migrante brasileira em Londres. Como apontaram (Gidley, 2000; Hall et al., 2000), desde o século XIX narrativas têm produzido demarcações entre mulheres respeitáveis e não respeitáveis através do eixo da classe social. Os corpos das mulheres da classe trabalhadora sempre correm o risco de serem julgados como não respeitáveis e não adequadamente femininos por observadores da classe média (Lawler, 2005). O foco no corpo e no comportamento das mulheres é um marcador constante nas justificativas das brasileiras de classe média quando dizem evitar lugares que consideram como parte da comunidade.

 

Conclusão

 

Buscando distanciar-se das características de classe presentes nas representações estigmatizadas do migrante no Reino Unido, brasileiros da classe média (na maioria brancos), de acordo com a pesquisa que realizei, tentam negociar e distanciar-se de seu posicionamento enquanto migrantes criando distinções de classe entre a população brasileira em Londres. Eles invocam todos os marcadores -econômicos, culturais, morais, de gênero, raciais e espaciais- que lhes permitam se definir como um grupo brasileiro distinto (cosmopolita), em oposição ao migrante brasileiro. No entanto, esses marcadores são negociados em conexão com referências produzidas no Brasil e reinventadas no Reino Unido. O migrante é o pobre subcidadão que não possui gosto, civilizado, educação e moralidade (da classe média) no Brasil, e assim, em Londres, continuariam reproduzindo o mesmo estilo de vida incivilizado, criminoso e nojento. De acordo com eles, migrantes seriam aqueles movidos por razões econômicas, são os ilegais, realizando trabalho não qualificado e interagindo apenas com outros brasileiros. As diferenças de classe (raciais e de gênero) historicamente construídas no Brasil viajam junto com esses brasileiros e são usadas na tentativa de se valorizarem em um contexto em que podem ser estigmatizados ao serem posicionados como migrantes.

Essas categorias, no entanto, não são rígidas, nem constituem um sistema classificatório de representação claro. Em um contexto em que a migração embaralha as fronteiras da classe ao produzir situações de mobilidade ocupacional descendente, por exemplo, os marcadores utilizados pela classe média para revigorar as barreiras de classe são constantemente negociados e ressignificados de acordo com sua posição no espaço social (ambos no Brasil e no Reino Unido). Como afirma Bourdieu, essas demarcações entre classes sociais são chamas cujas bordas estão em constante movimento (Bourdieu, 1987:13), uma vez que surgem de práticas que são tematicamente orientadas para diferentes fins (como para comida, arte, moda) e existente apenas no fluxo de práticas em andamento. Como resultado, a construção do migrante brasileiro, bem como da comunidade, a partir da classe social, não é apenas contraditória, mas também maleável e aberta à negociação. A representação da classe média do migrante também é exagerada, pois a população brasileira no exterior é diversa e não é realmente composta pelos mais pobres ou sem instrução do país (Oliveira, 2014). Os brasileiros mais desprovidos social e economicamente raramente possuem os meios para migrar para outro país (Martes, 2011).

 

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1 Devido à história da escravidão e da discriminação racial no Brasil, raça e classe (assim como gênero) estão historicamente interligadas, produzindo um grupo marginalizado de pessoas (na sua maioria pretas e pardas) que vivem como subcidadãos nas periferias urbanas das cidades e são frequentemente representadas pela elite e classe média como corpos incivilizados, degradados e criminosos (ver Guimarães, 2002 e Souza, 2012). Assim, quando brasileiros de classe-média (maioria branca) discutem divisões de classe aqui (Londres) em conexão com lá (Brasil), eles frequentemente também estão falando, implícita ou explicitamente, de raça e gênero.

2 O número médio de anos de estudo entre os brasileiros com mais de 15 anos vem aumentando nas últimas décadas, mas permanece muito baixo. Aumentou de 4 anos de estudo em 1980 para 6,2 em 2000 (IBGE/SIDRA, 2000). A maioria dos brasileiros, em Londres, tem pelo menos as qualificações do ensino médio ou diplomas universitários (Evans et al., 2011).

3 Chorinho é um popular gênero de música instrumental brasileira, originário do Rio de Janeiro do século XIX. Com influências de estilos e ritmos musicais vindos da Europa e da África, a maioria dos compositores clássicos brasileiros contemporâneos reconhece a sofisticação do choro e sua importância central na música instrumental brasileira (Livingston-Isenhour and Garcia, 2005).