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ARTÍCULOS LIBRES
Sobrinho - Trotta | Mulheres que ocupam: violência, despejos e resistência feminista
TRAMAS SOCIALES • N° 05 | ISSN: 2683-8095
quando da formulação de políticas públicas, que atraves-
sam as mulheres de forma específica e se expressam em
números, dados, relatos e corpos femininos.
1. Pobreza, endividamento e déficit
habitacional feminino
De acordo com a Fundação João Pinheiro, em 2019, a cri-
se habitacional em todo o Brasil estava em 5,8 milhões
de moradias. Os dados apontavam que o déficit habita-
cional entre 2016 e 2019 foi basicamente feminino, com-
preendendo 60% de mulheres, composto por mulheres
vivendo em condições de moradia inadequadas, arcando
com valores excessivos de aluguel e em situação de coa-
bitação (Lacerda, Guerreira e Freire, 2021).
Lacerda, Guerreira e Freire apontam o crescimento de
4,7% ao ano do déficit habitacional total entre os domi-
cílios com mulheres chefes de família, por outro lado, a
redução em 3,1% ao anodos domicílios chefiados por ho-
mens (FJP, p.154 apud Lacerda, Guerreira e Freire, 2021).
No Rio de Janeiro, o déficit habitacional era de 500 mil
moradias em 2019. Em 296 mil moradias do estado, as
famílias que ganham até três salários-mínimos, gastam
pelo menos 30% da sua renda pagando aluguel. 70% das
moradias precárias no território luminense eram che-
fiadas por mulheres em 2019 (Sampaio, 2023).
Os dados apontam para o que tem sido denominado de
feminização do déficit habitacional (Lacerda, Guerreira e
Freire, 2021). Esse processo está relacionado a processos
socioeconômicos, como a valorização imobiliária, ausên-
cia de políticas públicas habitacionais de interesse social,
o desemprego, os baixos salários, o endividamento com
os custos da reprodução social, mudanças nos arranjos
familiares, além de aspectos relacionados “à reprodução
histórica das violências de gênero que atravessam as tra-
jetórias de vida de mulheres” (Lacerda, Guerreira e Frei-
re, 2021).
Com relação ao endividamento das mulheres, Lacerda,
Guerreira e Freire (2021) apontam que muitas mulheres
negras e mães solo comprometem grande parte de seus
salários para o pagamento dos aluguéis ou se endividam
para conseguirem morar. As autoras destacam que “a va-
lorização dos imóveis nas últimas décadas e as crises do
mercado de trabalho com baixos salários, termina one-
rando muito estas mulheres, que chegam a comprome-
ter grande parte do orçamento familiar, ou até mesmo a
se endividar para poder bancar sua moradia” (Lacerda,
Guerreira e Freire, 2021).Outras pesquisas também têm
apontado que são as mulheres aquelas que majoritaria-
mente se endividam para o pagamento de bens de sub-
sistência, como com os custos de moradia, água, luz, gás
e comida (Melo, Augusto e Quintans, 2021).
As autoras destacam que a lógica neoliberal de desman-
telamento de políticas sociais faz com que a responsabi-
lidade pelos serviços públicos, que deveriam ser realiza-
dos pelo Estado, recaia integralmente sobre mulheres, já
impactadas com múltiplas jornadas de trabalho, fruto da
divisão sexual do trabalho, em um processo ainda maior
de superexploração das mulheres e privatização do cui-
dado (Melo, Augusto e Quintans, 2021).
Como aponta Bhattacharya (2020) são as mulheres, no
âmbito da desresponsabilização do Estado por políticas
públicas pelo capitalismo neoliberal, que arcam com as
despesas com alimentação, moradia, transportes públi-
cos, escolas e hospitais públicos, ingredientes necessários
para a produção da vida e reprodução social dos trabal-
hadores e suas famílias (Bhattacharya, 2020, p. 178).
Como afirmado por Cavallero e Gago (2019) viver no ca-
pitalismo financeiro produz dívida e esta recai principal-
mente sobre as mulheres e os corpos feminizados. Vero-
nica Gago (2020) analisa como o extrativismo financeiro
contemporâneo se expande com o “endividamento popu-
lar”, associado ao consumo vinculado à esfera financeira.
A globalização econômica promovida pelo capital global
é acompanhada pelo processo de expansão do sistema
financeiro e do endividamento dos países e de famílias
inteiras. A lógica do capitalismo neoliberal financeiro
que tem sido adotada pelos países é a desresponsabili-
zação do Estado pelas políticas sociais com a ampliação
da inclusão social via o consumo das famílias que têm
contribuído para ampliar o endividamento (Teixeira, Ro-
dríguez, Cortez e Sarno, 2022, p. 6).
Gago (2020) destaca como o endividamento generaliza-
do faz com que as pessoas se sintam individualmente
responsabilizadas pelo aumento do tempo de trabal-
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